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Tecelagem de Lã

artes
©DGARTES/Lino Silva/2022

Arte milenar comum a quase todas as culturas, a tecelagem nasceu no contexto da sedentarização e da necessidade de cobrir o corpo, assumindo desde cedo um carácter simbólico, social e económico para além do utilitário: “Os têxteis não revelam apenas engenho tecnológico e capacidade de apropriação e exploração das matérias-primas disponíveis. A par da sua utilização imediata no quotidiano da casa e no vestuário comum, os tecidos, devido à sua projeção ostentatória, cerimonial e ritual, alcançam uma dimensão económica, social e significante da maior importância” (PEREIRA, 1985: 5). O linho, a lã, a seda e, mais tardiamente, o algodão, são as matérias-primas com maior uso ao longo da nossa história, com grandes variações de quantidade de produção em função das épocas e das regiões (MEDEIROS E LOPES, 2000), mantendo-se o traço característico de ser uma arte maioritariamente feminina, artesanal e doméstica. 

Em diferentes momentos históricos, os incentivos ao desenvolvimento da tecelagem motivaram algum incremento da existência de pequenas oficinas, com um mestre e alguns artífices a trabalhar. Nos casos da tecelagem em oficina, com caráter de profissão a tempo inteiro e em contexto urbano, os artífices passaram a ser também homens. Ambas as modalidades se mantiveram em paralelo, a primeira para consumo caseiro e local, a segunda exclusivamente para comércio. 

As manufaturas de tecelagem desenvolveram-se a partir dos séc. XVII e XVIII, na sequência de medidas tomadas pelo Marquês de Pombal, sendo as primeiras estruturas organizadas de um sector que apenas no séc. XIX se industrializou (PERDIGÃO, 2002: 11 a 17). A facilidade de acesso às matérias-primas nos locais onde é produzida tem reflexo direto no desenvolvimento da arte da tecelagem. No norte litoral e centro do país, pelas condições ótimas para o seu cultivo, disseminou-se a arte de preparar e tecer o linho. A utilização da consolidou-se nas regiões do norte, centro e sul interiores, em zonas de intensa atividade pastoril. Nos Açores (Terceira, São Jorge e São Miguel), a tecelagem de mantas tem uma identidade muito própria, com padrões e cores que as distinguem. Na Madeira, a tecelagem fazia-se sobretudo em linho, que se considerava de grande qualidade, usado em vestuário e nas roupas de casa. A produção de panos de mistura de linho e lã era utilizada para o vestuário mais quente e a tecelagem com retalhos de tecido é ainda utilizada para fazer os tapetes riscados (LIMA, 1998).

A seda, a mais residual e particular das matérias-primas da tecelagem, teve igualmente uma época de expansão com as políticas pombalinas e a criação da Real Fábrica da Seda em Lisboa. Atualmente o único núcleo de produção de tecelagem de seda  localiza-se em Freixo-de-Espada-à-Cinta, onde, desde a criação de uma associação de mulheres nos anos 80 do séc. XX, se retomou todo o processo, desde a plantação de amoreiras ao tecer dos panos (PERDIGÃO, 2002).

A maioria dos espaços de trabalho das tecedeiras faz, ainda hoje, parte da casa onde habitam, numa divisão própria onde se instala o tear. A arte de tecer era passada de avós para mães e para filhas, que começavam cedo a ajudar e por volta dos 12 anos já se sentavam ao tear. Nas últimas décadas, diversos cursos vêm formando tecedeiras em contexto formal.

Na oficina tradicional de tecelagem e nas produções domésticas, é comum um mesmo tear confeccionar mantas de lã numa época, toalhas de linho noutra, e de algodão noutra, ajustando a produção ao material disponível e às encomendas. No entanto, existem técnicas associadas à tecelagem que requerem um conhecimento especializado. Tecer com perfeição implica anos de prática, durante os quais se consolida a liberdade criativa para além da reprodução das temáticas decorativas tradicionais. 

A tecelagem consiste no entrelaçamento ortogonal de fios de dois tipos diferentes: a urdidura ou teia (que consiste na estrutura do tecido), e a trama (que define a superfície do tecido, e onde se trabalham os desenhos, padrões, cores e texturas). O principal e indispensável equipamento da tecedeira e do tecelão é o tear. 

Os tecidos, mantas ou tapetes com desenhos e padrões repetidos muitas vezes, são executados de memória. Quando é necessário produzir um desenho novo a tecedeira utiliza um “cartão”, folha de papel quadriculado com o desenho ou uma amostra para auxiliar a confeção. Muitas vezes, para as mantas e cobertores de lã, o trabalho não termina no tear. A enxerga – primeiro tecido que sai do tear – é escaldada e batida por pisões, no caso do burel e dos cobertores de papa. Neste último caso é ainda cardada para levantar o fios da lã e torná-la mais macia.

A tecedeira e o tecelão trabalham com fios acondicionados em meadas e novelos, que tradicionalmente são de lã, linho, seda ou algodão. No caso do algodão, para aproveitar sobras de tecidos novos ou usados, e por facilidade de acesso ao material, são muito utilizadas as tiras.

Por serem materiais processados, eles estão expostos a uma série de procedimentos que antecedem o trabalho no tear. Tais procedimentos são tradicionalmente realizados pelas mesmas pessoas em contexto doméstico. As técnicas de transformação das matérias-primas são em si artes, dependendo delas a qualidade do produto que chega ao tear. É longo e trabalhoso o encadeamento das tarefas de cardar, fiar, tingir. No caso das fibras vegetais como o linho, o processo tem início muitas vezes no cultivo da planta, passando pelo tratamento das fibras, até chegar ao momento da fiação. Outra atividade intimamente ligada à arte da tecelagem é o tingimento dos fios. Apesar de os fios terem as suas tonalidades naturais, a cor artificial foi orientada na criação de padrões que, com o tempo, foram caracterizando a tecelagem em diferentes regiões. Os fios eram tingidos com pigmentos produzidos localmente, com um receituário que combina plantas tintureiras como cascas, folhas, raízes, musgos (verde, amarelo, castanho) e alguns pigmentos provenientes de insetos como a cochonilha (vermelho). Por exemplo, em São Jorge, nos Açores, as colchas tradicionais têm exclusivamente as cores das plantas tintureiras locais, como a urze, os lírios do campo, a erva azeda, o cedro, a faia e o travo-amarelo, entre outros. Noutras regiões eram usadas o azul, tingido com o anil, extraídas de plantas tropicais, que eram adquiridas nas drogarias. O mordente para fixação da cor pode ser vinagre, sal, urina ou a laranja azeda. O processo artesanal manteve-se vivo até hoje, apesar de o mais comum ser a utilização de anilinas (pigmentos químicos).  

©DGARTES/Lino Silva/2022

Os artefactos têxteis estão na génese ligados à necessidade de abrigo e de uso doméstico. Mantas, cobertores, roupa de cama e de mesa, agasalhos e vestuário, são alguns dos principais produtos a sair dos teares. Também faziam parte das produções dos teares os panos mais grossos para colchões e travesseiros, os alforges, algibeiras e sacas para acondicionamento e transportes de alimentos e outros bens. Os tapetes e passadeiras, maioritariamente em lã e em trapo de algodão, fazem também parte da lista dos muitos trabalhos manufaturados por tecedeiras e tecelões. As especificidades regionais de algumas produções, ligadas historicamente à disponibilidade das diferentes matérias-primas no lugar e à consequente consolidação do conhecimento da arte, enriquecem o panorama das obras de tecelagem, constituindo um vasto universo de artefactos. São muitos os diferentes tipos de tecidos de tear. Com a lã, produzem-se as fazendas, a estamenha, a saragoça, o burel e o surrobeco para vestuário e agasalhos, mantas e cobertores, colchas e tapetes. Com o linho tecem-se panos mais ou menos finos para vestuário, para lençóis e colchas, para toalhas de mesa e conjuntos de naperons, toalhas de mãos e outros panos de uso doméstico, cortinados e almofadas. Com algodão, trapos ou fio, vestuário, roupa para casa e tapetes. Com a seda, as tecedeiras criam panos finos, utilizados em vestuário e acessórios, para um mercado mais luxuoso. 

A produção em teares manuais é hoje uma obra de valor reconhecido e diferenciado, tendo ganho um lugar próprio no mercado, que não compete em preço, ou em quantidade, com as produções industriais de têxteis. A qualidade dos produtos e os valores de sustentabilidade são os principais trunfos das manufaturas artesanais existentes. Algumas são iniciativas culturais ligadas a associações e cooperativas, outras mantêm um contexto de apoio institucional, ligadas a museus, por exemplo. Mas também há micro e pequenas empresas principalmente nas regiões com histórico nesta arte, onde o conhecimento ainda subsiste. A produção artesanal de tecelagem continua a acontecer maioritariamente em contexto rural, sendo o mercado dos seus produtos tendencialmente urbano.

Bibliografia

  • PIRES, Ana (2009). Fios. Formas e memórias dos tecidos, rendas e bordados. Lisboa: IEFP- Instituto do Emprego e Formação Profissional.
  • LIMA, Rui de Abreu de (1998). Artesanato tradicional português. Vol. IV: Madeira . Lisboa: Edição do Autor.
  • MEDEIROS, Carlos Laranjo; LOPES, Filomena (2000). Tecelagem Tradicional: Motivos e Padrões  Lisboa: Livros e Leituras. 
  • PERDIGÃO, Teresa; CALVET, Nuno. (2002). Tesouros do Artesanato Português. Vol. II: Têxteis. Lisboa: Verbo.
  • PEREIRA, Benjamim (1985). Têxteis: tecnologia e simbolismo. Lisboa: IICT/, Museu de Etnologia.
©DGARTES/Estúdio Peso/2022
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