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Bordado das Caldas da Rainha

Práticas
©DGARTES/Vasco Célio-Stills/2024

O Bordado das Caldas da Rainha é um dos mais identificáveis Bordados Portugueses. Trata-se de um bordado extremamente original, quase abstracto, donde estão ausentes quaisquer flores ou motivos vegetalistas, um bordado que se constrói a partir de barras estreitas, ondeadas em volutas, que se acompanham, se cruzam ou se bifurcam e donde saem uns pequenos enrolamentos.

À estranheza do seu desenho, tão diferente de tudo o que se pode encontrar no conjunto dos Bordados Portugueses, soma-se o facto de ser bordado em três tons de castanho, desde o castanho-dourado ao tom do mel, definindo uma paleta cromática, também ela bastante inusitada, com um resultado que até levou um articulista a escrever na Gazeta das Caldas em 1927 que as toalhas bordadas das Caldas da Rainha parecem "pratos de arrôz doce enfeitados a canéla".

O texto fundador sobre o bordado das Caldas da Rainha foi publicado na Gazeta das Caldas no dia 25 de setembro de 1927. Com o título "Os bordados de D. Maria Margarida dos Santos. Uma empresa de Arte". Aquele artigo noticiava uma componente da V Exposição das Caldas da Rainha, correspondente a um núcleo de peças bordadas por aquela senhora e pela "plêiade de bordadôras que tem sabido escolher".

Margarida Santos, experiente em vários tipos de bordado, como se percebe pela notícia de 1927, perante um antigo pano que lhe aparece com as cores das linhas que ainda pelo final do século XIX se vendiam à porta do Hospital Termal, resolve reproduzi-lo e utilizar o seu programa decorativo noutros panos. Esta recriação vai originar um bordado à imagem e semelhança daquele antigo pano bordado, o qual correspondia a um canto de uma velhíssima toalha de altar existente na Igreja do Pópulo e concretizado com linhas que remetiam para as cores tradicionalmente vendidas nas Caldas das Rainha.

Clementina Carneiro de Moura que, mais tarde, participou, com Margarida Franco dos Santos, na definição de mais desenhos para o Bordado das Caldas da Rainha (e, ainda há, quem os possua assinados por ela), também fez com que este fosse incluído no elenco dos Bordados Portugueses que as alunas do Curso de Formação Feminina, existente nas Escolas Comerciais e Industriais, tinham que aprender.

Desde sempre existiu a tentação de associar este bordado à Rainha D. Leonor, fundadora da cidade das Caldas da Rainha e uma das mais notáveis rainhas portuguesas. Mas, de facto, o que se conhece do bordado não oficinal do final do século XV e início do século XVI (a Rainha D. Leonor viveu entre 1458 e 1525) não tem nada a ver com o que agora se designa por Bordado das Caldas da Rainha. A imagem do Bordado das Caldas da Rainha, tal como actualmente ela se nos apresenta, remete, claramente, para bordados feitos por toda a Europa do Sul, no início do século XVII.

Assim, não existe qualquer suporte factual que permita ligar este bordado à influência directa da Rainha D. Leonor pelo que qualquer associação do Bordado das Caldas da Rainha à fundadora da cidade inscreve-se num espaço de afecto e de lenda.

As volutas e as rectas constituem a base identitária do bordado das Caldas da Rainha, definindo e estruturando os vários padrões, onde podem aparecer outros motivos, como o das «carinhas» ou os símbolos da Rainha D. Leonor, como a coroa, o camaroeiro, ou o pelicano.

Aranhas, arquinhos e pequenos pássaros completam a lista dos motivos e é uma surpresa perceber como o jogo das ocorrências pode dar imagens tão diversas, de tal modo que já há quem fale de um "bordado popular" para designar o mais antigo, todo na base das volutas e rectas e o "moderno", com mais motivos figurativos e, sobretudo, com muito ponto de formiga dupla no lugar antes ocupado pelo ponto pé de galo interrompido.

Além dos pontos já citados podem ver-se também ponto de grilhão, ponto de formiga, ilhós caseados e pontos lançados a formar estrelas, feixes, etc.

Actualmente, o bordado está mais rico, mais pesado e, há que dizê-lo, num activo desvio da sua matriz fundadora, pois a substituição do ponto pé de galo pelo ponto de formiga compromete a leveza e elegância originais.

O processo de certificação em curso poderá ajudar a uma reflexão crítica sobre este bordado, nomeadamente numa estratégia para o seu relançamento.

  

Um agradecimento muito especial a Teresa Perdigão, pelo seu inexcedível apoio, a Joana Beato Ribeiro, Principelina Loução e Ana Maria Pereira, bordadeiras, activas e entusiásticas guardiãs do Bordado das Caldas da Rainha, que muito me ajudaram neste trabalho.

  

Texto de Ana Pires, especialista em têxteis portugueses.

  

A autora escreve segundo a anterior ortografia.

  

Bibliografia

  • CALVET de MAGALHÃES, M. M. (1956). Bordados e Rendas de Portugal. Coleção Educativa, Série N, º 10, p. 129-130
  • JOAQUIM, Teresa (1997). Menina e Moça. A Construção Social da Feminilidade. Coleção Margens. Lisboa: Fim de Século
  • MOURA, Maria Clementina C. de (1961). O Desenho e as Oficinas no Curso da Formação Feminina. In Escolas Técnicas. Boletim da Acão Educativa, N.º 29. Direção Geral do Ensino Técnico Profissional/ Ministério da Educação Nacional
  • MOURA, Maria Clementina C.  de (1968). Tapeçarias e Bordados. In LIMA, Fernando C. P. de (Dir.) A Arte Popular em Portugal, vol. III, Lisboa: Editorial Verbo
  • PAULO Jorge de S. (1928) História da Rainha D. Leonor e da fundação do hospital das Caldas. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade
  • TAVARES, Mário (1999). O Bordado das Caldas ou Bordado da Rainha D. Leonor (apoio técnico e ilustrações de Idalina Lameiras). Coleção Testemunhos, N.º 3. Caldas da Rainha: PH – Património Histórico
  • Os bordados de D. Margarida Santos. Uma empresa de arte. Gazeta das Caldas, N.º 88, 25 de setembro de 1927

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