São João de Lourosa, Viseu
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Cestaria de Madeira Rachada
A cestaria de madeira rachada, refere-se a uma tipologia de manufatura de cestos que por fazer uso de talas de madeira resulta não apenas numa diferenciação de formas e acabamentos com grande durabilidade, bem como em diferentes tecnologias e processos de preparação da matéria-prima. A par da cestaria de vime, constitui o segundo tipo de cestaria mais representado em Portugal (OLIVEIRA, 1976), sendo hoje em dia o mais ameaçado de desaparecimento, facto que se atribuiu à dureza da sua técnica, que não tem atraído novos praticantes, e também à diminuição da disponibilidade de madeira.
As necessidades que a cestaria de madeira rachada supriu inicialmente não lhe são exclusivas. À semelhança de outros tipos de cestaria, solucionou a produção de recipientes úteis em várias tarefas agrícolas, como as sementeiras, as colheitas e transporte de todo o tipo de cultivo; na pesca ou transporte de pescado; no comércio e outros usos mais domésticos. Contudo, algumas formas tornaram-se emblemáticas de atividades específicas de determinadas regiões, como por exemplo, o grande cesto vindimo do Douro; as canastras usadas no transporte e comércio de peixe, no Litoral e Centro do país; e os cestos da apanha da cereja na região do Fundão. A expressão económica que o cultivo e apanha da cereja teve junto à serra da Gardunha criou a necessidade de produzir em grande escala meios para o seu acondicionamento e transporte, o que, combinado com uma paisagem generosa em madeira de castanheiro, transformaram Alcongosta num dos principais centros de produção de cestaria de madeira do país.
Em 1961 Fernando Galhano dividiu este tipo de cestaria em dois grupos: o primeiro, no qual se agrupam os cestos que se produzem pelo entrecruzamento das tiras de madeira a partir do fundo, tecendo-se as paredes ao longo do seu prolongamento no sentido da sua altura; e um segundo grupo, cujo processo de manufatura tem início a partir de uma armação que conjuga um arco para o bordo, com talas largas e fortes para o fundo. Ambos conhecem grandes variações locais que por ação da venda ambulante generalizada passaram a poder ser encontrados em várias zonas do país.
Inserido no primeiro grupo, encontramos o cesto associado à área que corresponde ao distrito de Viana do Castelo e norte do distrito de Braga. Trata-se de um modelo bastante popular, feito com talas largas de madeira de castanheiro (por vezes de carvalho), a partir de um fundo quadrado, com boca redonda guarnecida com bordo rígido revestido por uma tira delgada, podendo ter uma asa de tira rígida de madeira, duas asas pequenas ou nenhuma asa.
Nos municípios de Carrazeda de Ansiães e Torre de Moncorvo (distrito de Bragança), um modelo de cesto semelhante mas de maiores proporções, é conhecido como canastra, correspondendo ao modelo identificado no Leste Transmontano (LOPES, 2022). No município de Penafiel foi documentada a prática antiga de produção de cestos dentro desta tipologia e que se estendem a outros municípios da região, conhecidos como os gigos, gigões, cestos da terra, cestas das vindimas de asa de arco simples ou asa em arco triplo, açafates e condessas, sendo as várias gerações de cesteiros da madeira rachada aqui conhecidos como canastreiros (SOEIRO, 2008).
Dentro deste grupo, algumas formas caíram em desuso, como por exemplo o cesto de quatro asas, também designado de cesto de sangarinho ou sangrinho, por fazer uso do arbusto com o mesmo nome para o entrelaçamento das paredes. Foi muito utilizado na região de Barcelos para levar à feira ou em romarias. Eram feitos em vários tamanhos que correspondiam a diferentes unidades de medida (p. ex. uma rasa, ½ rasa, entre outras). Para além da exigência da sua técnica, a dificuldade na obtenção da matéria-prima ditou o seu desaparecimento.
No segundo grupo, destacamos o modelo de canastra mais difundido, e que tem a sua origem na região das Beiras Litoral e interiores. De forma mais arredondada, com asa ou duas pequenas pegas, para uso mais agrícola, ou no modelo notabilizado pelas varinas, usado à cabeça no transporte e venda ambulante de peixe, com umas talas que se prolongam para além do seu comprimento (pentes). A canastra de padeira corresponde a um modelo de grande difusão regional utilizado na venda de pão branco ao domicílio.
A cesta amieira de Tondela, de produção preservada até hoje pelos cesteiros da aldeia de Nandufe, tem na sua base uma estrutura de dois arcos cruzados de madeira de carvalho, a partir das quais se entrelaçam as paredes do cesto, formando um modelo singelo de cesta com asa, em tempos utilizado nas sementeiras à mão, colheita da batata ou azeitona ou transporte de comida pelos trabalhadores agrícolas.
Em algumas regiões em que coexistiram a produção de cestos de vime e a de cestos de madeira, verificou-se uma distinção entre os praticantes de ambos os ofícios: os cesteiros, no trabalho com vergas de vime; e os canastreiros, no trabalho com a madeira aplainada em tiras (LOPES, 2022). Tal poderá dever-se ao facto de ambas as produções requererem ferramentas diferentes e uma especialização em diferentes processos de trabalho e preparação da matéria-prima. Um aspeto transversal a muitos ofícios artesanais e que neste também se verifica é a sua sazonalidade e o facto de ser uma atividade exercida em paralelo com outras, entre elas, a da agricultura.
Na cestaria de madeira, algumas ferramentas foram criadas exclusivamente e em função do modo de trabalhar dos seus utilizadores, em perfeita relação ergonómica. O banco de cesteiro é disso exemplo e constitui o utensílio central e diferenciador, pois é neste que as talas, tiras ou cavacas de madeira são lavradas (aplainadas) até atingirem a espessura pretendida. Este banco pode adquirir diferentes designações consoante o uso de cada local (cavalete, cavalo ou burra), tal como a sua construção e formato. Alguns artesãos utilizam o banco com uma estrutura vertical, outros o banco de estrutura horizontal.
As restantes ferramentas, não só não são exclusivas da cestaria, como também são utilizadas em diferentes etapas da produção dos cestos: tanto na preparação da madeira, como depois já no fabrico do cesto. Entra as principais encontramos a foice ou o podão, utilizados para rachar os troncos de madeira; o cepo de madeira, sobre o qual se racha a madeira; o cutelo (ou quitelo), para lavrar ou cavacar as tiras de madeira no banco; uma tábua, sobre a qual se fundeia ou inicia o fundo do cesto; o furador, para auxiliar no afastamento do entrelaçado do cesto; a faca ou a podinha, para aparar a madeira; e o maço para bater. Em algumas tipologias de cestos, também podem ser utilizadas uma fôrma ou uma bitola, como forma de garantir uma uniformidade de tamanhos, atendendo a que muitos cestos constituem também unidades de medida.
Cabe ao artesão a recolha e tratamento da sua própria madeira. A madeira de carvalho e de castanheiro foram as madeiras preferenciais, pela sua resistência e qualidade dos cestos que delas resultam. No entanto, o desaparecimento de muitas espécies de carvalhos e diminuição nos castanheiros levou à utilização da madeira de espécies mais acessíveis e de mais rápido crescimento, como a austrália e a mimosa.
Os processos de trabalho e o nome que lhes são dados variam muito de região para região, assim como as designações de cada elemento que vai formar o cesto. É consensual que no caso da madeira de castanheiro, a madeira de eleição para este tipo de cestos, esta deve ser colhida logo no primeiro mês do ano, entre as árvores jovens, sendo depois posteriormente guardada para ser utilizada ao longo do ano conforme as necessidades. Os troncos não deverão ter menos de 4 anos, para melhor flexibilidade e qualidade do trabalho. Depois do corte, é necessário aquecer os paus diretamente sobre o lume, sem que se queimem. Por ação do calor e com o uso de uma foice, a madeira vai sendo descascada e aberta naturalmente no sentido do seu comprimento. Este procedimento já não se verifica com a madeira de austrália ou mimosa. Estas são mais acessíveis e poderão ser colhidas noutras alturas do ano. A sabedoria e conhecimento na identificação da melhor madeira é parte fundamental do trabalho: para o fundo e estrutura das paredes (urdidura) ou armação de base, as talas de madeira deverão ser mais largas e fortes; e para tecer as paredes a madeira deverá ser mais fina e maleável (teçume), assim como a fita de madeira que em alguns modelos vai coser ou enlear o bordo (enleia). No banco (ou cavalete) e utilizando um cutelo, a madeira é aplainada consoante a espessura e maleabilidade pretendida. A madeira é armazenada conforme o fim a que se destina e por tamanhos. Antes da sua utilização esta será demolhada para que se torne maleável e fácil de manobrar. Até aqui este é um processo de trabalho comum a ambos os grupos de cestos de madeira acima identificados.
Enquanto no segundo grupo o cesto é tecido em torno da armação que lhe define a forma e estrutura de partida, a construção dos cestos do primeiro grupo vai acompanhando a definição da sua forma, começando pelo fundo. Nesta fase, uma tábua no chão vai fazer de base e apoio sobre a qual se entrecruzam as talas de madeira necessárias, bem apertadas e com o auxílio do próprio peso do corpo do cesteiro que firma o início do trabalho com os próprios pés, até atingir a área de fundo desejada. Segue-se o erguer do cesto, que vai exigir aparar a largura das talas antes destas serem dobradas e levantadas. Após todas as talas serem levantadas e dobradas junto ao fundo, são unidas no topo por uma corda que as segura e fixa, permitindo ao cesteiro mais facilmente começar a tecer as paredes do cesto, muitas vezes utilizando outras espécies vegetais preparados em tiras, como a cana, o bambu ou o vime. O bordo é conseguido de forma distinta conforme os usos locais: ou “vergando o cesto”, enfiando as extremidades aguçadas das talas verticais que sobram para dentro da parede do cesto, ou aplicando uma verga mais espessa e forte em toda a parte exterior da sua abertura (em alguns locais também no diâmetro interior) que é fixa enleando sobre ela a toda a volta uma tira mais fina de madeira, que para além de fortalecer a abertura do cesto, embeleza o acabamento. As asas, sendo uma, ou duas, correspondem habitualmente ao prolongamento de uma ou duas talas verticais propositadamente mais compridas e que no final são vergadas, com uma das extremidades rematada dentro da parede do cesto, podendo ser encorreadas (envolvidas) por uma tira mais delgada de madeira.
Apesar da venda em feiras ter levado a uma difusão por todo o país dos modelos mais característicos de determinadas zonas, pode-se afirmar que a produção de cestaria em madeira rachada está muito ligada ao território onde predominam as árvores que fornecem a madeira mais utilizada: inicialmente, mais o castanheiro e o carvalho, e mais recentemente, a austrália. Talvez por isso, apenas pontualmente se encontra este tipo de produção artesanal no sul do país, nomeadamente, no Alto Alentejo, distrito de Portalegre, e no Algarve, em Monchique (OLIVEIRA, 1976).
Atualmente, encontramos um número muito residual de detentores e praticantes deste conhecimento, ao contrário do que se verificava em tempos mais recuados em muitas localidades do país, que chegaram a constituir-se como grandes centros de produção deste tipo de cestaria. Não foi apenas a quebra na transmissão deste conhecimento, pela pouca atratividade da dureza deste trabalho, que ditou o seu declínio. A madeira tornou-se cada vez menos disponível, consequência da progressiva redução da área florestal original de Portugal, decorrente dos incêndios, pragas, doenças e incremento de áreas de cultura intensiva.
Apesar da acentuada redução na produção, os cestos não caíram em desuso. Muitos cesteiros continuam a ser requisitados para continuarem a produzir alguns dos modelos mais populares, para usos mais domésticos e decorativos, ou para desenvolverem novas formas e aplicações em parceria com projetos de design, por continuarem a ser uma solução eficaz, duradoura e sem impacto negativo para o ambiente.
Bibliografia:
- Centro de Estágio de Educação Visual (1979) - «O sangrinho de Barcelos, 1976» In Artes e Tradições de Barcelos. Lisboa: Terra Livre, p. 159-169
- Centro de Estágio de Educação Visual (1982) - «A Cestaria no distrito de Viseu» In Artes e Tradições de Viseu. Lisboa: Terra Livre/ Direcção-Geral da Divulgação, p. 172-197
- GALHANO, Fernando - «Cestaria de entre Douro e Minho : contributo para o estudo da cestaria portuguesa». Trabalhos de antropologia e etnologia. Porto : Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia. Vol. 18, n° 3-4, (1961-62), p. 257
- LOPES, Isabel Alexandra (2022) - «Com quantas cavacas se faz uma canastra? A arte da cestaria de madeira rachada». Revista Memória Rural, n.º 5. Carrazeda de Ansiães: Museu da Memória Rural/ Câmara Municipal, p. 156-167
- OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim (1976) – «Cestaria». In Alfaia agrícola. Lisboa : Instituto de Alta Cultura, p. 333-347
- SOEIRO, Teresa – «A Cestaria Tradicional em Penafiel». Portugália, Nova série, Vol. XXIX-XXX, 2008-2009, p.253-288
Webgrafia:
- Florestas.pt (2023) [disponível em https://florestas.pt/]
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