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Cutelaria

artes
©DGARTES/Vasco Célio-Stills/2024

A arte de produzir facas com base na técnica ancestral é uma prática que foi recuperada no tempo e que tem, atualmente, como núcleos mais ativos Caldas da Rainha, Verdugal e Palaçoulo. Cada faca é uma peça única, feita por quem domina a arte de domar o fogo, denominando-se como cutelaria de autor. Esta é procurada tanto pelos chefes de cozinha de renome como por quem procura uma faca de qualidade aprimorada. Também a tradicional navalha e o canivete continuam a ser utensílios versáteis e emblemáticos que cabem em qualquer bolso. 

A exploração e trabalho do metal remonta aos primeiros assentamentos humanos. O fogo, para além de aquecer, iluminar, cozinhar e proteger, ganhou uma nova função: a fundição. Esta tecnologia permitiu a criação de novos artefactos, que por sua vez, terão fomentado a primeira revolução agrícola. Escavações arqueológicas levadas a cabo no sítio do Lombo do Ferreiro (Turquel, Alcobaça), na década de 80, revelaram achados arqueológicos que comprovam a existência de uma importante atividade metalúrgica associada à idade do ferro (BETTENCOURT, 1988), imprimindo-se neste local, uma profunda genética metalúrgica que se regista até aos nossos dias.

Já na época medieval, o ofício de cuteleiro era de relevante importância em qualquer núcleo urbano, dado a que este estavam associados outros mesteres, do qual dependiam, como é o caso do alfaiate, o barbeiro e o sapateiro para as tesouras; os carniceiros para os navalhões; e os carpinteiros e lavradores para os podões. Assim como também os bainheiros, que produziam as bainhas em couro, madeira ou metal para a armaria e demais instrumentos de corte.

Uma das urbes onde a cutelaria mais se firmou entre os séculos XV e XVI terá sido em Guimarães, onde as onze oficinas sobressaiam comparativamente a outras atividades (à exceção do ferreiro e do sapateiro, que ascendiam em número avultado). Este núcleo urbano revela uma forte tradição na arte da cutelaria que se reflete até à atualidade – segundo as taxas de 1552, os cuteleiros vimaranenses produziam, com esmero, toda uma variedade de cortantes.

Identificam-se, nos nossos dias, algumas importantes zonas com tradição de forja, cujo caráter artesanal da cutelaria ainda persiste e se encontra bem firmado. São elas, as Caldas da Rainha com Santa Catarina e a vizinha Benedita, Verdugal na Beira Alta e Palaçoulo em Trás-os-Montes - esta vila é atualmente a referência para o canivete tradicional português. Nestas capitais de cutelaria têm-se formado muitos cuteleiros que têm vindo a disseminar a arte um pouco por todo o território nacional.

©DGARTES/Vasco Célio-Stills/2024

A produção de uma faca é feita de etapas que se iniciam numa chapa metálica que sujeita a processos agressivos se consubstancia numa faca única, de autor, em que o fio de corte se quer rigorosamente acutilante. Trata-se de um processo duro, não só para a matéria-prima, mas também para o artífice, que lida com as altas temperaturas da forja e com a força necessária para agredir o metal na bigorna. Citando Carlos Norte, o Cuteleiro do Lombo do Ferreiro “Minerar e forjar o ferro sempre foi um trabalho duro, envolvendo fogo e altas temperaturas e com muitos segredos para obter qualidade. Muitas vezes os ferreiros eram considerados alquimistas envolvidos em mistérios e segredos.” (NORTE, 2024)

O fabrico inicia-se com a introdução da peça de aço carbono na forja a uma temperatura de cerca de 1000ºc; de seguida, esta, aínda incandescente, é moldada com martelo na bigorna.  Este processo repete-se sucessivamente até que o metal atinja a forma desejada. De seguida, a faca retorna à forja para ser endurecida e refinado o grão de aço, passando, para a têmpera, que consiste no arrefecimento da faca por imersão numa mistura de óleos, com o propósito de prevenir fissuras. Esta é ainda sujeita ao processo de revenimento - aquecimento em forno a cerca de 200ºc durante pelo menos uma hora, dotando-a de elasticidade e durabilidade no uso quotidiano. Por fim, a faca encontra-se preparada para ser polida e afiada na esmeriladora ou lixadeira. 

O processo finaliza-se com a colocação do cabo, que poderá ser em madeira, osso ou chifre. As características únicas de textura e tonalidades das matérias-primas acrescentam a beleza, elegância e originalidade às facas e navalhas.

Existe ainda um outro processo de produção artesanal de facas que atrai os cuteleiros de autor: a técnica de Aço Damasco. Trata-se de um método de produção que teve origem há mais de 1500 anos, em Damasco, Síria, mas que se perdeu no tempo. Nos anos 70 do século passado, foi reanimado num ímpeto de revivalismo, por primar pela peculiaridade e beleza do trabalho final. Consiste na criação de uma faca a partir de um bloco de diversas peças de aço carbono. Num processo repetido de torção e dobra no martelo e bigorna, o produto final é uma faca com um acabamento singular, que remete para o efeito visual de uma impressão digital. Consubstanciando-se numa arte operada pela natureza com a intervenção humana, esta é dotada de toda uma imprevisibilidade que resulta numa peça única, de inestimável valor.

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Atualmente assiste-se a uma revitalização desta arte. Destacando-se das técnicas industriais, a cutelaria artesanal resgatou a sabedoria ancestral e tem vindo conquistar um público que aprecia o exemplar único – a cutelaria de autor – em que o cuteleiro tem como mote a produção recorrendo à arte original de domar o fogo. Aqui, a forja, o martelo e a bigorna são os protagonistas e o cuteleiro é o mestre. E desta arte resulta todo um glossário de cortantes: faca de chef, faca de matança, faca de petisco, navalha cabriteira, navalha bandido, canivete de marinheiro, canivete de enxertia, canivete capa-grilos, e a mais portuguesa de todas, a navalha caneças. Cada uma delas dotada de formatos diferentes para as funções a que se destinam.

Ergonomicamente pensados para um fim específico, os diferentes modelos de navalha e canivete são utilitários de excelência para uso casual ou como ferramenta privilegiada nos mais variados ofícios e artes tradicionais. Eram ferramenta essencial para comer o petisco, no tempo em que o talher ainda não estava bem introduzido no quotidiano doméstico e continuam a ser utilizados pelos artesãos na produção de palitos esculpidos, de mobiliário de bunho, e também nas demais artes da cestaria e entalhe em madeira.


Bibliografia

  • BETTENCOURT, Ana. (1988). A Freguesia de Turquel (Alcobaça): Alguns dados Arqueológicos, Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra
  • MAURÍCIO, Fernando Luís Pereira. (2015). Apontamento para a história das Cutelarias, Caldas da Rainha: Cadernos Culturais da Freguesia da Benedita, nº 29
  • NOGUEIRA, Marina Eduarda Ribeiro. (2005) A «Carrila» do Lombo Ferreiro – Estudos sobre a rede viária romana da Estremadura Portuguesa, Lisboa
  • NORTE, Carlos. (2017). Canivete Português, Região Oeste – Apontamentos para a sua história. Caldas da Rainha
  • NORTE, Carlos “Oeste como Capital de Cutelaria”. Bordado, cerâmica e cutelaria: diálogos nas Caldas da Rainha. Lisboa: Direção-Geral das Artes 2024:38-42 
©DGARTES/Vasco Célio-Stills/2024
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