A Paisagem
Na paisagem colhem-se as espécies vegetais que nela habitam de forma espontânea, como a cana, a palma, o bunho, o bracejo ou a cortiça, ou que nela são cultivadas intencionalmente para posterior transformação, como o vime ou o linho, para nomear algumas das fibras mais utilizadas em Portugal. Caminhar com uma alcofa de empreita de palma é transportar um pouco da paisagem serrana algarvia. O tarro das regiões de pastoreio e de sobreiros, contém a paisagem da qual se extrai a cortiça de que ele é feito. Da paisagem alimentam-se e reproduzem-se as diferentes ovelhas autóctones das quais se extrai a lã que dá origem a produtos muito diferenciados regionalmente. É do solo que se extrai a argila, cujas diferentes características naturais influenciam a olaria que é produzida em diferentes pontos do país.
A VOZ AQUI É O GESTO
Desde há meio século que o cesteiro José Amendoeira colhe o vime para fazer os seus cestos. Só por caminhos de terra então se chegava à Ribeira da Azilheira que ali se aproxima da fronteira entre o Alentejo e o Algarve. O viaduto da autoestrada em direção a Almodôvar e ao Sul atravessa agora, a uma centena de metros de altura, este lugar sem praticamente lhe tocar. Mas para lá chegar, continua a ser necessário percorrer as sucessivas curvas e contracurvas que ligam o barrocal e a serra algarvia à planície alentejana.
São lugares marcados por paisagens distintas, por territórios diversos, onde se encontram os protagonistas deste filme. A rodagem começou num espaço insular, na Lombinha da Maia, em São Miguel, Açores, onde pudemos observar a cardação, a fiação e a tecelagem da lã de ovelha. Seguiu-se a cidade de Castelo Branco, onde foi documentado o processo da seda, do casulo ao tear. Rumo ao Sul, no Algarve e Alentejo, deparámos com situações distintas: a moldagem do barro e a sua aplicação na cerâmica; a apanha e utilização da cana, da palma e do vime, por diferentes artesãos, para a feitura dos cestos.
De alguma forma, as paisagens que se apresentam como pano de fundo destes lugares condensam memórias, revelam-nos marcas das transformações sucessivas que ali se inscrevem. Refletem um património cultural e imaterial particular que faz parte da identidade dos lugares e daqueles que aí viveram ou habitam. Evocam acontecimentos passados, memórias, saberes e práticas reproduzidas ao longo de gerações ou até mesmo, em algum momento, descontinuadas por aqueles que ali se cruzaram, fixaram ou acabaram por partir.
Sem deixar de considerar a individualidade de cada um dos artesãos, o filmevídeo desenvolve-se a partir de uma narrativa conceptual e visual que aspira a funcionar como um todo. Em cada caso, começa por fixar e enquadrar paisagens na proximidade dos lugares onde os nossos interlocutores acedem, manuseiam e transformam as matérias-primas com que fazem as suas peças.
A imagem e o som aproximam-nos dos diversos protagonistas, como que os desafiando a partilhar o seu saber-fazer. Levam-nos para a sua beira, convidando-nos a posicionar no lugar e no olhar de quem faz. A voz de cada um é, aqui, o seu gesto. Em cada e todo o momento, a sensibilidade nota-se na sua repetição, no aprumo firme dos remates com que vão dando forma e consolidam as peças.
Mais do que informar, importa envolver. Não há por isso a intenção de explicar ou acrescentar para além daquilo que as várias sequências focam, a partir de planos fixos, em diferentes escalas e perspectivas: os rostos e gestos de quem colhe, prepara e manipula a matéria-prima, dando corpo a peças únicas. Constrói-se desta forma a narrativa visual percorrendo a arte de quem sabe, como ninguém, do que faz.
Regresso a José Amendoeira. Como quase todos os que foram retratados neste filme, faz parte de uma geração de artesãos que estão envolvidos em todo o processo de criação das suas peças, desde a recolha da matéria-prima até ao produto final. É assim que aqui os vemos e representamos. Provavelmente, a tendência será para que cada vez mais deixem de colher os materiais utilizados na manufactura e passem a adquiri-los.
Face aos desafios que hoje se colocam a todos estes artesãos, o momento presente, porventura, acentua a profunda mudança e transformação naquilo que tem a ver com a continuidade e a reprodução destas práticas situadas, tais como as conhecemos. Fica o registo deste filme para memória futura e reflexão crítica.
Jorge Murteira